LEONARDO LICHOTE
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Martinho da Vila tem uma única foto de sua infância. “Só uma de quando eu tinha sete anos”, ele conta rindo -uma marca de sua fala. Seu riso, porém, nunca é ingênuo. O artista de 85 anos cita a fotografia -e ri- no momento em que fala do apagamento que a escravidão e o racismo promoveram sobre a memória do povo negro brasileiro. Seu riso, ali, é pelo absurdo.
Em Martinho da Vila, portanto, a alegria é denúncia, resistência e, sobretudo, afirmação de um modo de vida. Lição que herdou da mãe, Teresa de Jesus.
“Ela dizia sempre coisas como ‘é muito melhor sorrir do que chorar’. Esse meu jeito de ser é todo dela”, diz Martinho, que acaba de lançar o livro “Memórias de Teresa de Jesus”, pela editora Malê, no qual narra a história da mãe, em primeira pessoa, assumindo a voz dela. Lançada originalmente em 2002 como “Memórias Póstumas de Teresa de Jesus”, a obra foi escrita tendo como motivação central Alegria, filha caçula do compositor e escritor.
“Ela era pequena demais quando minha mãe morreu, quase não conviveu com ela. Escrevi o livro para Alegria ter esse contato com a avó. Mas aí resolvi aproveitar para contar a história da família pela voz da minha mãe”, diz o autor, que decidiu reescrevê-lo agora para acrescentar os últimos 21 anos da trajetória dos Ferreira.
O início da narrativa de Martinho tem ares de peça da mitologia de formação do Brasil. O autor abre o livro com o brasão da família, apontando sua origem europeia. Logo em seguida, pela voz de sua mãe, lembra a história de seu avô, “um indiozinho goitacá que foi capturado por caçadores bibarrenses [de Duas Barras, cidade natal de Martinho, no interior fluminense]”.
Batizado de Martinho José Ferreira (mesmo nome do compositor, seu neto) por ter sido aprisionado no dia de São Martinho, ele se casou com Procópia, mulher “de origem africana”. Os dois tiveram um filho que batizaram com o nome bíblico de Josué, pai de Martinho da Vila.
O autor toma esse ponto de partida para costurar um pouco de pesquisa sobre Duas Barras e o Rio de Janeiro (para onde a família se mudou) e muito de memória oral. “Lembrei muitas histórias com as minhas irmãs mais velhas, principalmente Elza, que tem 96 anos e está lúcida, com muito boa memória.”
Mantendo o sabor de oralidade, o livro conta episódios como a chegada da família ao Rio de Janeiro. “‘Nossa! Que açude grande’, disse Deuzina ao se deparar pela primeira vez com a Baía de Guanabara.” E, pela fala da mãe, Martinho aproveita para lembrar os bastidores do nascimento de alguns de seus sambas, como “Casa de Bamba”. “As memórias são todas reais. Mas junto com as memórias a gente cria algumas historinhas meio fantasiosas”, diz.
Tema que atravessa os sambas de Martinho, a ancestralidade é a matéria fundamental de “Memórias de Teresa de Jesus”. “Nós os negros não sabemos de onde viemos. Rui Barbosa era uma figura inteligente mas não foi muito inteligente ao resolver destruir os registros da escravidão. Seria para tirar uma mancha da nossa história, mas apagou o nosso passado”, protesta, antes de completar: “E é olhando para o passado que se cria um futuro melhor”.
Olhando para o passado e deixando registradas a história de sua mãe e de sua família, Martinho vê no futuro o eco de seu refrão famoso: “Canta forte, canta alto, que a vida vai melhorar”. Lembra diferentes gerações de ativistas negros e acredita que as conquistas avançaram. “Hoje lutamos por representatividade nos órgãos públicos, nas empresas. Mas melhorou muito para o que era. Hoje já dá para a gente discutir com a polícia”, brinca Martinho, que em seguida assina a ironia: “Mas devagar”.
Além do livro recém-lançado, Martinho prepara um disco, previsto para maio, “Negra Ópera”. “Pensei em fazer uma coisa assim como a ópera, que fala das coisas dramáticas mas é bonito. Um disco dividido em três atos, tratando das questões da negritude”, conta. Há ainda uma autobiografia em produção, que ele pretende lançar até o fim do ano. “Fiz algo diferente. Vai se chamar ‘Monólogo Dialogado”, com dois personagens que sou eu. Um é o Zé Ferreira, o outro é o Da Vila. Eles conversam, e assim vou contando minha história.”
A produção intensa mostra que os 85 anos não pesam. “Me sinto bem. Consigo fazer a maior parte das coisas que conseguia há 40 anos. A diferença é que as pessoas têm mais cuidado: ‘olha o degrau, o fio aqui’. Eu acho bom”, diz, novamente rindo. A ideia da morte às vezes lhe ocorre, mas nunca como medo. “Minha mãe morreu com 95, minha irmã mais velha tem 96… Vou mais uns 15, tenho tempo ainda para fazer muita coisa.”