Embora a Alemanha ainda não tenha cumprido a promessa de devolver o fóssil de um exótico dinossauro retirado ilegalmente do Brasil, paleontólogos brasileiros já planejam o que fazer com o exemplar, que se encontra atualmente em um inusitado limbo acadêmico. Em razão da procedência ilícita do material, a revista especializada Cretaceous Research decidiu despublicar o artigo científico em que que quatro pesquisadores estrangeiros descreviam a espécie, batizada então de Ubirajara jubatus.
Sem o artigo, a descrição da nova espécie deixa de existir formalmente para a ciência. Isso significa, portanto, que o caminho está aberto para que outros paleontólogos publiquem uma nova descrição e até uma nova nomenclatura para o animal. “Não me recordo de ter visto uma situação assim antes na paleontologia”, avalia o diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner, paleontólogo com 78 espécies de vertebrados no currículo.
A possibilidade de estudar e renomear a espécie -o primeiro dinossauro não aviário encontrado com penas preservadas na América Latina- já movimenta a comunidade paleontológica brasileira. De forma aberta ou em negociações de bastidores, diversos cientistas já demonstram interesse em trabalhar com o animal. Além do valor científico, o dinossauro também tem o peso de ser o maior símbolo da luta dos paleontólogos brasileiros contra o tráfico internacional de fósseis. A campanha digital #UbirajaraBelongstoBR inundou as redes sociais e ganhou destaque na imprensa internacional.
Segundo muitos diplomatas e paleontólogos, o pesado dano reputacional para o Museu de História Natural de Karlsruhe e para os demais envolvidos no caso da importação ilegal do fóssil inaugurou uma nova era nas discussões sobre contrabando do patrimônio fossilífero brasileiro. Diretamente envolvido nas negociações de repatriação, o paleontólogo Allysson Pinheiro, diretor do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, da Universidade Regional do Cariri (Ceará), diz que já há uma movimentação de colegas interessados em estudar a espécie. Ele ressalta que uma eventual operação para rebatizar o dinossauro ainda precisaria ultrapassar questões formais.
“O Ubirajara foi descrito com todas as formalidades do código internacional de nomenclatura zoológica. A princípio, não houve nenhuma violação. O problema é que, quando se despublica o artigo científico, a espécie fica no limbo, porque não deixa de existir automaticamente”, explica. “Para que a espécie seja formalmente invalidada, ainda é preciso que o caso seja submetido e avaliado em plenária da comissão internacional”, completa.
Pinheiro destacou ainda que existe a possibilidade de que a equipe de pesquisa que apresentou o trabalho original consiga publicar um novo artigo descrevendo a espécie, depois que o fóssil já se encontrar devidamente depositado em uma instituição nacional. O especialista diz que poderia ainda haver uma colaboração dos autores estrangeiros com paleontólogos brasileiros. Uma situação que, reconhece ele, pode causar desconforto alguns membros da comunidade nacional.
A insatisfação dos brasileiros com a postura dos envolvidos, sobretudo com Eberhard “Dino” Frey, ex-diretor do museu de Karlsruhe, e David Martill, professor da Universidade de Portsmouth, é bem anterior ao Ubirajara. A dupla tem um longo histórico de publicações com fósseis cuja saída do Brasil é contestada pela comunidade nacional.
Diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner considera que poderia haver benefícios na inclusão dos pesquisadores estrangeiros. “O Brasil quer os fósseis de volta, não quer roubar a pesquisa de ninguém”, afirma. O paleontólogo diz que gostaria de estudar o animal, não necessariamente em uma nova descrição. “Poderia ser uma análise, um segundo artigo”, detalha.
O diretor do Museu Nacional destaca, porém, que todo o processo tem de ser feito em coordenação com as entidades da região onde o dinossauro viveu.
“Nós temos uma relação de décadas com Museu de Santana do Cariri e com a Universidade Regional do Cariri. Nós nos conhecemos e somos amigos. Qualquer situação que envolva esse ou outro fóssil repatriado será discutida entre as instituições.”
Uma das principais articuladoras da campanha pela repatriação do dinossauro, Aline Ghilardi, professora da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), diz que também faz parte do grupo interessado em estudar o dinossauro. “Eu sei de vários pesquisadores aqui do Brasil que estão interessados em realizar diversos tipos de estudo com o fóssil. Não só a descrição da espécie, mas em várias esferas, como estudos envolvendo bioquímica, para conhecer aspectos da biologia do organismo”, detalha.
Além dos problemas éticos, Ghilardi também diz que o artigo original do grupo estrangeiro também tem “falta de competência técnica”. “Tem uma cara de paleontologia do século passado. A gente tem várias ferramentas modernas na paleontologia hoje, tem até tomografia de usando luz síncrotron. Muitas coisas que poderiam ter sido aplicadas, que estão disponíveis na Europa, mas não foram usadas”, destaca.
Para a paleontóloga, a possível mudança de nome da espécie permitiria ainda a utilização de uma designação mais em linha com a região onde o animal viveu, inclusive com a participação do povo indígena do kariri. “A guardiã do idioma deles já se dispôs a ajudar a escolher um nome”, conta. Apesar da perspectiva positiva, todos os pesquisadores envolvidos na reportagem são unânimes em dizer que, antes de qualquer coisa, é preciso garantir que o material volte para o Brasil. A decisão de repatriar o fóssil foi anunciada pelo Conselho de Ministros da região de alemã de Baden-Württemberg em 19 de julho.
“Ainda não recebemos nenhum comunicado formal depois disso”, diz Allysson Pinheiro, diretor do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens.
FolhaPress