Renato Benvindo Frata
Lendo Cervantes se vê Dom Quixote enamorado por Dulcinéia, a mulher imaginada a quem ofertou diariamente seus atos e pensamentos, poesias e coragem desde o acordar até o último suspiro, ao se deitar. Batia-lhe no peito um tambor de amor e, com esse viver, pintou-a de encantos e sorrisos que, mesmo à distância, o mantinha pronto para os combates. Vestia ele armadura de lata e cavalgava Rocinante, o cavalo desengonçado, magricelo e arrepiado, mas tido como o mais belo espécime dos alazões. Dom Quixote amava e nos seus delírios visionários jogando-se para a morte, combatia moinhos de vento e rebanhos de ovelhas transformados em inimigos bárbaros e vorazes que o levavam e a seu o escudeiro o servo Sancho Pança a incursões desgastantes, mas compensadoras, porque a vitória, por mais difícil, compensa. Morreu louco e humilhado, assistido apenas por Sancho, mas o que se vê nessa epopeia é que mesmo tomado por surtos de loucura, em nenhum momento cometeu atrocidades, ou quebra de algum objeto, ou invasão a propriedades. Não. Era combatente romântico e, antes de tudo, ético. Louco, mas respeitador.
Domingo, 9 de janeiro, milhares de ‘Quixotes’ vestidos de amarelo e tendo como escudo nossa bandeira, sob efeito de manada invadiram Brasília, especificamente a Esplanada dos Ministérios. Homens e mulheres, de mamando a caducando, travestidos de heróis e comandados não se sabe por quem, armados de sua loucura desrespeitaram todas as regras da civilização e depredaram (com a permissão da polícia) os prédios dos três poderes e ali, engalfinhados – como fazia o personagem descrito -, enfrentaram e abateram os ‘monstros’ de paredes de vidro, seus pertences como mesas, cadeiras, computadores, máquinas de imprimir, candelabros, quadros, brasões e até peças de arte, tomados como inimigos.
A imprensa invertebrada, babando de prazer, alardeou ao mundo esse vandalismo praticado por quem, durante os últimos setenta dias juntara-se às portas de quartéis e em nome de um pretenso patriotismo, pedia socorro pela não conformação com o resultado de uma eleição, diga-se duvidoso.
O que queriam os agitadores agora denominados golpistas de Bolsonaro? Pela bagunça generalizada acredito que nem saibam ao certo, porque nos seus gritos a céu aberto uns pediam o tal código-fonte (não mostrado pelo TSE na quebra do princípio da publicidade dos atos administrativos), outros xingavam o Presidente recém-eleito, e outros, ainda, exibiam palavrões aos ministros do STF sem esquecerem de suas respectivas senhoras mães.
Claro que houve reação autoritária – diga-se tardia e depois do prejuízo concretizado, o que compromete a imagem e a postura do governo num momento de tão alta tensão popular pela rejeição ao eleito/escolhido, mas, passadas mais de 72 horas do fato, notícias desencontradas (muitas são mentirosas) mostram que os desastrados cidadãos, primeiro confinados num ginásio de esportes, depois direcionados a presídios ou dispensados para voltarem às suas casas, já despidos da louca euforia que os colocou nas ruas, perguntam-se o que teria dado errado?
Sim, porque estando em mais de trinta mil pessoas a protestar, apenas uns quantos se insurgiram e invadiram as instalações dos referidos prédios com o fim de depredação. Teria havido sabotagem?
Ao que tudo indica, sim, fato que não retira dos desafortunados a responsabilidade pelo movimento que nasceu espontâneo politicamente e que hoje os põe sob a justiça predatória que conhecemos. O pior, é que esse episódio que tinha tudo para ser brilhante, se tornou uma dança macabra de pés descalços sobre cacos.